
Nossos pais são uma das maiores dádivas que temos na vida.
Não falo de eles terem nos trazido a este mundo (fato importantíssimo, mas infelizmente há aqueles que se limitam a isso), refiro-me a terem nos protegido, a terem nos servido de exemplo, a terem tido a paciência para nos ensinar a ser “gente de bem”. E o fizeram sem querer nada em troca, exceto o nosso bem-estar!
Há alguns anos, publiquei um texto de Artur da Távola em que ele conclui:
Ser pai é, enfim, colher a vitória exatamente quando percebe que o filho a quem ajudou a crescer já, dele, não necessita para viver. É quem se oculta na obra que realizou e sorri, sereno, por tudo haver feito para deixar de ser importante.
É uma linda conclusão, mas um primo me enviou hoje um outro texto que a contradiz, provando que o trabalho dos pais nunca termina: eles estão sempre nos ensinando.
Nem que seja a última coisa que façam…
Todo filho é pai da morte de seu pai
Por Fabrício Carpinejar*
Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.
É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.
É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.
É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.
Todo filho é pai da morte de seu pai.
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.
E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.
Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.
E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.
Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:
— Deixa que eu ajudo.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrado:
— Estou aqui, estou aqui, pai!
O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.
* Escritor, jornalista e professor universitário, premiado com o Jabuti, APCA e ABL, entre outros.
Texto publicado originalmente na Revista Donna.
Esse texto seria uma homenagem excepcional para o Dia das Mães ou para o Dia dos Pais deste ano, mas achei-o tão bonito que não resisti…
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Excelente !!! Obrigado por compartilhar.
Peço permissão para reproduzir no ZEducando.
abraços,
José Rosa.
Obrigado, Zé!
Pode publicar à vontade! Você e o ZEducando têm carta branca!
Valeu, agendei um post para o dia das mães e outro para o dia dos pais.
Abs
Excelente este texto,
Obrigado, Paulo!
[…] artigo, que originalmente vi no blog do amigo Zeluis (jlcarneiro.com), serve tanto para o Dia dos Pais quanto para o dia das Mães, assim penso. É […]